sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Dos pés à cabeça

A professora do primário, já esgotada e sem muita paciência, mais com ela própria por haver perdido o horário da condução e ter se atrasado do que com as crianças que, como lhes é natural, brincavam quase todas num mesmo canto da sala de aula, entrou como um vento forte em dia de chuva, levantando papéis e poeira da própria mesa.

Era o último quarto letivo, a época em que as ansiedades mais afloram e o planejamento, muitas vezes negligenciado durante o decorrer do ano, vem esfregar-nos na cara todos os erros de cálculo e negligência que praticamos. Tia Vera, como era chamada pelas crianças, tinha os bolsos e as pastas recheadas de preocupações e dúvidas. Não estava em seu melhor estado.

Sentou-se, respirou fundo e só então, juntou ânimo suficiente para olhar as crianças. Seus olhos tais como os de quem acorda de um sono profundo, foram compreendo a imagem turva que se esclarecia aos poucos. Que lindas crianças. Que magníficos sorrisos acompanhavam seus olhos amorosos a lhe fitarem aguardando o seu tão costumeiro - “Bom dia, meus amores!” – ao qual se seguia coro angelical em resposta - “Bom dia, Tia Vera!”.

Do que mais precisaria a docente para sentir correr um frio por sua espinha e de calor ser tomado seu coração?

Reuniu-as todas, ao menos as que seus finos braços puderam alcançar, em um único e gostoso abraço. Sentiu que era privilegiada, que o bom Deus lhe tida dado um reino, um trono e um castelo de quatro por seis metros quadrados repleto de súditos fiéis, valorosos e amáveis.

A despeito da recepção gostosa, as crianças, saudáveis que eram, logo estavam correndo, gritando, gesticulando, deixando objetos cair.

Especialmente naquela manhã tia Vera estava sem forças, desgastada por todo um ano de penosas tarefas, de locomoções cansativas.

Enquanto dirigia-se de volta á sua mesa, pensava aflitamente em uma maneira de facilitar o seu trabalho ao menos naquele dia. Nem mesmo voz sentia ter para repreender, corrigir, chamar de volta ao lugar, convencer da necessidade de compartilhar os brinquedos, de não atrapalhar o amiguinho que quer prestar atenção á história que se conta.

Correu os olhos por toda a extensão da mesa, cada cantinho, como que a procurar um tesouro oculto durante todo o ano. Algo que possuísse o poder mágico de fazê-las sentar quietinhas, boquinha aberta apenas para o espanto e olhinhos arregalados tão atentos estivessem ao que quer que fosse que ela fizesse decidisse ensinar.

Da mesa, seus olhos só tinha força para irem um pouco além, pelo chão da sala. Faltava-lhe forças para erguê-los. E via os pezinhos. Lindos pezinhos! Bem calçados, inquietos, virados de uma forma que parecia impossível ao esqueleto humano. Mas crianças são todas tão maleáveis, tão flexíveis, tanto o corpo quanto o próprio espírito. E dessa observação pensou que talvez pudesse fazer pequenos grupos. Ocupá-las em algum trabalho que não necessitasse de si.

- Crianças, vamos fazer hoje uma brincadeira diferente! – a palavra encantada “brincadeira” teve o efeito de sempre entre as crianças. Todas se puseram a correr para perto da professora com dedinhos apontando o céu e pedidos de “primeiro eu”.

- Todas vão brincar ao mesmo tempo! Vocês vão se ajuntar com o coleguinha que tiver a mesma cor de calçado!

- O meu tem muitas cores, tia Vera. – irrompeu, erguendo o pezinho até bem alto uma das crianças.

- Não tem problema – acudiu Vera – quem tiver o calçado de duas cores faz um grupo. Quem tiver mais de duas cores, varias cores, faz outro grupo. Quero que vocês mostrem para a tia o quanto são inteligentes e façam isso vocês mesmos! Eu vou dar nota pra quem fizer certinho. Mas vocês é que vão fazer, tudo bem?

- Tudo bem – responderam em uníssono enquanto já encostavam pé com pé para analisar melhor os calçados.

E não é que deu certo? Vera estava tão distante que o barulho e a correria na sala lhe pareciam um filme mudo. Por vezes piscava demoradamente, não por sono ou preguiça, mas como que a dar uma saidinha da sala sem que ninguém percebesse. Pobre Vera.

Passado algum tempo, Vera foi trazida de volta à turma por um puxãozinho de manga de camisa. – Tia! tia! Já terminamos os grupos.

Vera não lamentou a interrupção de seu descanso. Ao contrário, sentia-se satisfeita por aqueles longos minutos de quietude e, responsável que era, já começava a se sentir culpada por estar a tanto tempo sem interagir com as crianças.

- Que lindo! Vocês são muito espertos! Estão todos de parabéns! Agora, vamos continuar nos grupos e vamos pintar alguns desenhos.

Vera, já mais animada, distribuiu desenhos de animais diversos, pincéis, potinhos de tinta preparadas a base d´água. Após o que voltou para sua mesa e, revigorada, pôs-se a preparar as próximas atividades que daria ás crianças.

- NÃO!!! – Vera assustou-se com o grito desesperado e agressivo de uma aluna – O que está acontecendo ai? – perguntou colocando-se de pé, atitude que, ela bem sabia, inibia alguma hostilidade das crianças. – Qual é o problema?

- Professora, ela não quer me emprestar a tinta verde!

- O que é isso, Ana? O que aprendemos aqui? Não é compartilhar tudo com os amigos, sermos bondosos e companheiros?

- Mas tia Vera, ele não é do meu grupo. Ele tem outro tipo de calçado!

- A gente pode juntar todo mundo de novo tia? – interviu outro aluno.

- Não, não pode. – Vera gostou da idéia que teve e, em grupos menores, afastados, as crianças acabavam não falando tão alto, não corriam a sala toda, pois se limitavam ao termo do grupo a que se ligaram.  – Quero que fique como está. Pedro, use outra cor. Misture um pouco de azul com amarelo que você tem o verde. Todo mundo de volta ao trabalho. – Concluiu já com os olhos na tarefa que preparava.

Vera, não se deu conta, mas além da sua mesa um mundo novo se desenhava. Uma criança empurrava outra que, desatentamente, aproximava-se demais do grupo a que não pertencia. Outra criança, de calçado branco, pisou por acidente o pé de uma que calçava azul o que provocou animosidade entre os dois grupos.

O que começou como uma brincadeira estava deixando as crianças ansiosas e irritadiças. Pois já mediam que grupo era mais forte, que grupo tinha mais integrantes, em que grupo estavam os mais bonitos da sala, ou os que tiravam melhores notas. E só piorava. Não demorou muito pra que línguas desaforadas fossem mostradas de um para outro lado, assim como caretas e bocas de desdém.

Vera repetiu a experiência por algumas semanas. E já não se viam línguas pra fora, tampouco caretas. Não por terem as crianças entrado em acordo. Ao contrário, sabendo-se que ao olhar para alguém do outro grupo a resposta seria uma expressão desaforada, não se olhavam mais no rosto. Olhava-se tão somente os pés. Eram eles o elo, a identificação, a personalidade de cada um.

E assim foi. E a isso se acostumavam cada vez mais. E menos barulho se ouvia, pois os grupos agora conversavam baixinho para que o outro não ouvisse pois, em geral, o que se falava era crítica a algum membro dos de fora.

Para Vera a situação parecia perfeita. Cessaram-se as discussões, as gritarias, o corre-corre. Tudo estava em plena harmonia.

Numa noite de terça-feira Vera telefonou pra sua coordenadora. Estava com muita rouquidão e dificuldade de respirar. Avisou que não poderia estar na escola na manhã seguinte e pediu pra ser substituída por alguém. A própria coordenadora prometeu substituí-la enquanto se recuperava. Todos gostavam de Vera e seu bom histórico depunha em seu favor.

Na manhã de quarta-feira, bem antes que as crianças chegassem tia Sonia, a coordenadora, estava já em sala a preparar tudo para receber os alunos. Preocupada em minimizar a ausência de Vera e algum possível desconforto das crianças com a mudança de professora, levou consigo vários objetos. Queria uma aula muito dinâmica e divertida para conquistar a atenção e afeto das crianças rapidamente.

Tudo pronto. Pôs-se à porta para recebê-las uma a uma, com muita disposição e simpatia.

Sonia tinha em mente vários jogos e desafios que seriam executados em um pequeno circuito que ela preparara dentro da sala. Estendera um tapete espesso, emborrachado para que até possíveis quedas dessem prazer ás crianças ao invés de alguma dor. Chegadas à porta as crianças podiam ver a sala enfeitada de balões, bolas, barreiras, cordas, traves e muito mais. Estavam ansiosas!

Sonia fê-los entrar, não sem antes mandar que todos tirassem os calçados.

Entravam correndo, pulando, sentindo a gostosa maciez do tapete. Estavam encantadas com tantas cores e objetos, sentiam-se mais em um parque que em uma sala de aula.

- Atenção, todos! – alertou tia Sonia – vamos nos acomodar para que eu possa explicar o circuito de jogos!

Sonia estranhou que as crianças correram a olhar os pés umas das outras parecendo tão perdidas, tão confusas!!! Como se procurassem algo, todos os olhares corriam o chão, miravam os pés alheios. E percebeu que, então, as crianças iam se acalmando e começavam a erguer os olhos lentamente. E viam canelas, joelhos, ombros, rostos, olhos. Olhos brilhantes, bonitos, amigáveis, puros e gentis. Olhos iguais aos seus próprios.

Geovani.

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