A
professora do primário, já esgotada e sem muita paciência, mais com ela própria
por haver perdido o horário da condução e ter se atrasado do que com as
crianças que, como lhes é natural, brincavam quase todas num mesmo canto da
sala de aula, entrou como um vento forte em dia de chuva, levantando papéis e
poeira da própria mesa.
Era o último quarto letivo, a época em que as ansiedades
mais afloram e o planejamento, muitas vezes negligenciado durante o decorrer do
ano, vem esfregar-nos na cara todos os erros de cálculo e negligência que
praticamos. Tia Vera, como era chamada pelas crianças, tinha os bolsos e as
pastas recheadas de preocupações e dúvidas. Não estava em seu melhor estado.
Sentou-se, respirou fundo e só então, juntou ânimo
suficiente para olhar as crianças. Seus olhos tais como os de quem acorda de um
sono profundo, foram compreendo a imagem turva que se esclarecia aos poucos.
Que lindas crianças. Que magníficos sorrisos acompanhavam seus olhos amorosos a
lhe fitarem aguardando o seu tão costumeiro - “Bom dia, meus amores!” – ao qual
se seguia coro angelical em resposta - “Bom dia, Tia Vera!”.
Do que mais precisaria a docente para sentir correr um
frio por sua espinha e de calor ser tomado seu coração?
Reuniu-as todas, ao menos as que seus finos braços puderam
alcançar, em um único e gostoso abraço. Sentiu que era privilegiada, que o bom
Deus lhe tida dado um reino, um trono e um castelo de quatro por seis metros
quadrados repleto de súditos fiéis, valorosos e amáveis.
A despeito da recepção gostosa, as crianças, saudáveis
que eram, logo estavam correndo, gritando, gesticulando, deixando objetos cair.
Especialmente naquela manhã tia Vera estava sem forças, desgastada
por todo um ano de penosas tarefas, de locomoções cansativas.
Enquanto dirigia-se de volta á sua mesa, pensava
aflitamente em uma maneira de facilitar o seu trabalho ao menos naquele dia.
Nem mesmo voz sentia ter para repreender, corrigir, chamar de volta ao lugar,
convencer da necessidade de compartilhar os brinquedos, de não atrapalhar o
amiguinho que quer prestar atenção á história que se conta.
Correu os olhos por toda a extensão da mesa, cada
cantinho, como que a procurar um tesouro oculto durante todo o ano. Algo que
possuísse o poder mágico de fazê-las sentar quietinhas, boquinha aberta apenas
para o espanto e olhinhos arregalados tão atentos estivessem ao que quer que
fosse que ela fizesse decidisse ensinar.
Da mesa, seus olhos só tinha força para irem um pouco
além, pelo chão da sala. Faltava-lhe forças para erguê-los. E via os pezinhos.
Lindos pezinhos! Bem calçados, inquietos, virados de uma forma que parecia
impossível ao esqueleto humano. Mas crianças são todas tão maleáveis, tão
flexíveis, tanto o corpo quanto o próprio espírito. E dessa observação pensou
que talvez pudesse fazer pequenos grupos. Ocupá-las em algum trabalho que não
necessitasse de si.
- Crianças, vamos fazer hoje
uma brincadeira diferente! – a palavra encantada “brincadeira” teve o efeito de
sempre entre as crianças. Todas se puseram a correr para perto da professora
com dedinhos apontando o céu e pedidos de “primeiro eu”.
- Todas vão brincar ao mesmo
tempo! Vocês vão se ajuntar com o coleguinha que tiver a mesma cor de calçado!
- O meu tem muitas cores, tia
Vera. – irrompeu, erguendo o pezinho até bem alto uma das crianças.
- Não tem problema – acudiu Vera
– quem tiver o calçado de duas cores faz um grupo. Quem tiver mais de duas
cores, varias cores, faz outro grupo. Quero que vocês mostrem para a tia o
quanto são inteligentes e façam isso vocês mesmos! Eu vou dar nota pra quem
fizer certinho. Mas vocês é que vão fazer, tudo bem?
- Tudo bem – responderam em
uníssono enquanto já encostavam pé com pé para analisar melhor os calçados.
E não é
que deu certo? Vera estava tão distante que o barulho e a correria na sala lhe
pareciam um filme mudo. Por vezes piscava demoradamente, não por sono ou
preguiça, mas como que a dar uma saidinha da sala sem que ninguém percebesse.
Pobre Vera.
Passado
algum tempo, Vera foi trazida de volta à turma por um puxãozinho de manga de
camisa. – Tia! tia! Já terminamos os grupos.
Vera não
lamentou a interrupção de seu descanso. Ao contrário, sentia-se satisfeita por
aqueles longos minutos de quietude e, responsável que era, já começava a se
sentir culpada por estar a tanto tempo sem interagir com as crianças.
- Que
lindo! Vocês são muito espertos! Estão todos de parabéns! Agora, vamos
continuar nos grupos e vamos pintar alguns desenhos.
Vera, já
mais animada, distribuiu desenhos de animais diversos, pincéis, potinhos de
tinta preparadas a base d´água. Após o que voltou para sua mesa e, revigorada,
pôs-se a preparar as próximas atividades que daria ás crianças.
- NÃO!!!
– Vera assustou-se com o grito desesperado e agressivo de uma aluna – O que
está acontecendo ai? – perguntou colocando-se de pé, atitude que, ela bem
sabia, inibia alguma hostilidade das crianças. – Qual é o problema?
-
Professora, ela não quer me emprestar a tinta verde!
- O que
é isso, Ana? O que aprendemos aqui? Não é compartilhar tudo com os amigos,
sermos bondosos e companheiros?
- Mas
tia Vera, ele não é do meu grupo. Ele tem outro tipo de calçado!
- A
gente pode juntar todo mundo de novo tia? – interviu outro aluno.
- Não,
não pode. – Vera gostou da idéia que teve e, em grupos menores, afastados, as
crianças acabavam não falando tão alto, não corriam a sala toda, pois se
limitavam ao termo do grupo a que se ligaram.
– Quero que fique como está. Pedro, use outra cor. Misture um pouco de
azul com amarelo que você tem o verde. Todo mundo de volta ao trabalho. –
Concluiu já com os olhos na tarefa que preparava.
Vera,
não se deu conta, mas além da sua mesa um mundo novo se desenhava. Uma criança
empurrava outra que, desatentamente, aproximava-se demais do grupo a que não
pertencia. Outra criança, de calçado branco, pisou por acidente o pé de uma que
calçava azul o que provocou animosidade entre os dois grupos.
O que
começou como uma brincadeira estava deixando as crianças ansiosas e
irritadiças. Pois já mediam que grupo era mais forte, que grupo tinha mais
integrantes, em que grupo estavam os mais bonitos da sala, ou os que tiravam
melhores notas. E só piorava. Não demorou muito pra que línguas desaforadas
fossem mostradas de um para outro lado, assim como caretas e bocas de desdém.
Vera
repetiu a experiência por algumas semanas. E já não se viam línguas pra fora,
tampouco caretas. Não por terem as crianças entrado em acordo. Ao contrário,
sabendo-se que ao olhar para alguém do outro grupo a resposta seria uma
expressão desaforada, não se olhavam mais no rosto. Olhava-se tão somente os
pés. Eram eles o elo, a identificação, a personalidade de cada um.
E assim
foi. E a isso se acostumavam cada vez mais. E menos barulho se ouvia, pois os
grupos agora conversavam baixinho para que o outro não ouvisse pois, em geral,
o que se falava era crítica a algum membro dos de fora.
Para
Vera a situação parecia perfeita. Cessaram-se as discussões, as gritarias, o
corre-corre. Tudo estava em plena harmonia.
Numa
noite de terça-feira Vera telefonou pra sua coordenadora. Estava com muita
rouquidão e dificuldade de respirar. Avisou que não poderia estar na escola na
manhã seguinte e pediu pra ser substituída por alguém. A própria coordenadora
prometeu substituí-la enquanto se recuperava. Todos gostavam de Vera e seu bom
histórico depunha em seu favor.
Na manhã
de quarta-feira, bem antes que as crianças chegassem tia Sonia, a coordenadora,
estava já em sala a preparar tudo para receber os alunos. Preocupada em
minimizar a ausência de Vera e algum possível desconforto das crianças com a
mudança de professora, levou consigo vários objetos. Queria uma aula muito
dinâmica e divertida para conquistar a atenção e afeto das crianças
rapidamente.
Tudo
pronto. Pôs-se à porta para recebê-las uma a uma, com muita disposição e
simpatia.
Sonia
tinha em mente vários jogos e desafios que seriam executados em um pequeno
circuito que ela preparara dentro da sala. Estendera um tapete espesso,
emborrachado para que até possíveis quedas dessem prazer ás crianças ao invés
de alguma dor. Chegadas à porta as crianças podiam ver a sala enfeitada de
balões, bolas, barreiras, cordas, traves e muito mais. Estavam ansiosas!
Sonia
fê-los entrar, não sem antes mandar que todos tirassem os calçados.
Entravam
correndo, pulando, sentindo a gostosa maciez do tapete. Estavam encantadas com
tantas cores e objetos, sentiam-se mais em um parque que em uma sala de aula.
-
Atenção, todos! – alertou tia Sonia – vamos nos acomodar para que eu possa
explicar o circuito de jogos!
Sonia
estranhou que as crianças correram a olhar os pés umas das outras parecendo tão
perdidas, tão confusas!!! Como se procurassem algo, todos os olhares corriam o
chão, miravam os pés alheios. E percebeu que, então, as crianças iam se
acalmando e começavam a erguer os olhos lentamente. E viam canelas, joelhos,
ombros, rostos, olhos. Olhos brilhantes, bonitos, amigáveis, puros e gentis.
Olhos iguais aos seus próprios.
Geovani.
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